Um dia, o rei disse à pastora: - Os meus vassalos querem que eu case, e tu és a única mulher de quem eu gosto; queres casar comigo?
-Isso não pode ser, senhor, porque eu apenas sou uma pobre pastora.
-É o mesmo, caso contigo; mas com uma condição, de nunca me contrariares nos meus desejos ou ordens, por pouco razoáveis que eles sejam.
-Estou por tudo que Vossa Majestade me ordenar
Dentro de dias realizar-se-ia o casamento. O rei mandou, para a cabana onde morava a pastora e o pai, fatos de rainha, que ela vestiu, deixando os seus trapinhos. Então, disse-lhe o velho pai:
-Guarda esses trapinhos para quando te sejam precisos.
A filha guardou as roupas velhas que tinha despido numa caixa, que deixou em poder do pai, e partiu para o palácio.
Fez-se o casamento e todos estavam muito contentes por verem o rei muito feliz e apaixonado pela sua linda esposa.
Ao fim de nove meses, Carlota deu à luz uma menina, tão formosa como sua mãe. Passados três dias, o rei entrou no quarto da esposa e disse-lhe:
-Trago-te uma triste notícia: os meus vassalos querem que eu mande matar a nossa filha, porque se não conformam ser um dia governados pela filha de uma pastora.
-Vossa Majestade manda e cumpre-me obedecer - respondeu a rainha, quase a saltarem-lhe as lágrimas dos olhos.
O rei recebeu a menina e entregou-a a um conselheiro.
Um ano depois, a rainha teve um filho, que o rei mandou igualmente matar sob o mesmo pretexto.
A rainha vivia muito triste, mas não se queixava, porque gostava muito do seu marido, o rei.
Alguns anos depois, o rei, muito apoquentado, entrou no quarto da rainha e disse-lhe:
-Vou dar-te uma notícia, de todas a mais triste, os meus vassalos estão indignados comigo; não querem que estejas em lugar de rainha, e dizem-me que te expulse do palácio. Por isso querida Carlota, prepara-te que tens de voltar para a cabana do teu pai.
- Não se apoquente, Real Senhor, estou pronta a obedecer; parto já. - respondeu Carlota
-Tens de despir os fatos de rainha. - lembrou-lhe o rei
É o que já vou fazer - respondeu Carlota
E a rainha despiu toda a roupa que tinha vestida, ficando apenas com a camisa.
Não dispo a camisa porque encobre o ventre onde estiveram guardados os nossos filhos - disse a rainha, com os olhos rasos de água.
O rei não encontrou palavras para objectar.
Estava o velho pastor sentado à porta da sua cabana quando viu a filha aproximar-se. Recolheu-se logo para dentro, foi tirar da caixa os velhos vestidos e levou-os à filha para que ela os vestisse. Ela vestiu-os sem proferir qualquer queixume.
Continuou a sua antiga vida de pastora. Para ela a sua vida de rainha tinha sido apenas um sonho; lembrava-se muito dos seus filhos e para estes iam todas as suas saudades.
Passados muitos anos, o rei voltou à cabana de Carlota e disse-lhe que os vassalos insistiam com ele para se casasse; e por isso , tinha resolvido casar com uma formosa princesa de quinze anos.
-Efectivamente, um rei bom como Vossa Majestade merece ter uma descendência que lhe perpetue o nome. - disse-lhe Carlota
Venho pedir-te o favor de voltares ao palácio para dirigires as criadas da cozinha. Bem sabes que a princesa há-de ser acompanhada por fidalgos e vem igualmente acompanhada pelo seu irmão mais novo; quero por isso servi-los com um grandioso banquete.
-Estou pronta, vou logo que Vossa Majestade ordenar.
-Eles chegam amanhã. Deves ir hoje para o palácio.
Carlota foi vestida com um pobre vestido de chita com que costumava ir à igreja.
No dia seguinte, chegou a noiva e o irmão e uma comitiva de muitos fidalgos. Logo à sua chegada houve grandes festejos.
Carlota estava governando na cozinha e aí o rei foi encontrá-la e perguntou-lhe: - Não vens ver a minha noiva?
- Ela respondeu-lhe: - Estou à espera que venha alguém que me substitua aqui, enquanto vou e volto. Chegou então uma cozinheira e Carlota foi cumprimentar a noiva.
É muito linda! - disse Carlota beijando a mão da noiva - Deus conserve por muitos anos a sua preciosa saúde. É digna do rei que vai receber para seu esposo.
A menina ficou estupefacta, quando ouviu estas palavras.
Então o rei ajoelhou-se diante de Carlota e disse: - Olha que são os teus filhos. Quis experimentar o teu coração: és uma pastora que vale mil rainhas.
Houve então muitos abraços, beijos e choros de parte a parte.
O rei mandara os filhos para casa de uma tia que os educara como príncipes, em vez de os mandar matar como tinha dito à rainha.
( Algarve - Loulé )
Este conto foi coligido da tradição oral pelo Dr Ataíde de Oliveira nos Contos Populares do Algarve; é de alto interesse, merecendo comparar-se com a versão literária do se´c XVI, das histórias de Proveito e Exemplo, de Trancoso, e que adiante se relaciona com a universalidade deste tema tradicional, extensamente idealizado na poesia da Idade Média. O povo português conhecia todos estes tesouros.
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