“GRAÇAS A DEUS PARA SEMPRE,
TENHO A BARRIGA CHEIA E TODA A MINHA GENTE”
Havia n’outro tempo um
homem muito ruim para a mulher e para os filhos, e por isso fazia-os passar fomes, batia-lhes, não falava
com eles, enfim, a pobre mulher vivia num tormento constante.
Tinha ele, por costume,
ser o primeiro que aviava o seu prato, com pouca comida, e principiava logo a
comer, de maneira que quando a mulher estava a aviar o prato do terceiro ou do
quarto filho, já ele tinha acabado, e então tirava a saladeira que tinha o
resto do jantar, e guardava-a no armário, e dizia à maneira de graça:
“Graça a Deus para sempre,
Tenho a barriga cheia e toda a minha gente”
A mulher coitadinha tinha
que comer só pão, para que os filhos comessem o que ela tinha podido tirar da
saladeira, mas que era pouco para tantos. E ele, como naquela altura, tinha comido
pouco, depois vinha comer sozinho o resto
da comida que estava na saladeira
guardada no armário. Assim sucedia todos os dias e a todas as refeições,
a mulher e os filhos andavam sempre com fome.
Um dia apareceu lá em
casa um compadre a quem a mulher cheia de desgosto contou o que o marido lhe
fazia e a má vida que lhe dava devido ao seu mau génio.
O compadre teve muita dó
dela e dos filhos e prometeu-lhe que o havia de ensinar a ser bom marido e bom
pai.
Veio depois o marido e
fez muitas festas ao compadre, convidando-o para ficar em sua casa, etc. etc...
Chegou a hora do jantar e
o dono da casa fez o mesmo do costume; mas quando ia tirar a saladeira para a
ir guardar, depois de dizer a oração do costume:
“Graça a Deus para
sempre,
Tenho a barriga cheia e toda a minha gente”
diz-lhe o compadre:
“Espere lá compadre, se vossemecê tem a barriga cheia, a minha e a das crianças
estão despejadas; e como vossemecê me convidou para ficar na sua casa, não há-de ser para eu
passar fome!”
O outro envergonhou-se de
voltar a sentar-se à mesa, e foi para o trabalho, e o compadre, a mulher e os
filhos comeram a fartar.
Depois disse para a
comadre: -“ Hoje, vossemecê não faça ceia, deixe o resto por minha conta!”
Chegou a noite. A mulher
não falava em ceia e depois de terem estado um bocado sentados à lareira a
conversar, foram-se todos deitar, mas no meio da noite, o dono da casa que não conseguia dormir com tanta fome, acordou
a mulher e disse-lhe:
- “ Oh mulher, p'lamórdeus, vai-me fazer alguma
coisa para comer, que não posso estar com tanta fome!”
-“Ai home, o que te posso
fazer a estas horas?”
-“ Faz-me umas papas!”
-“ Faz-me umas papas!”
Levantou-se a pobre
mulher, reavivou o lume e pôs o tacho com a água ao lume a ferver com a
farinha, mas quando as papas estavam quase prontas, o compadre que tinha ficado
na cozinha “para dormir mais quente” atira com as meias sujas lá para dentro do
tacho, que estava mal seguro na trempe, tombou e entornaram-se as papas.
-“ Ai compadre que me
desgraçou” – disse a comadre
-“Então a comadre não
estava a fazer a barrela?”
-“Não senhor, eram as
papas para o meu marido que está cheio de fome! Então o que lhe hei-de agora
dizer?”
-“Ora, conte-lhe o meu
engano!”
A mulher foi para o
quarto contar ao marido o que se passou, mas ele que tinha muita fome diz-lhe:
-“ Oh mulher, tem paciência, vai fazer-me um bolo da amassadura, e coze-o no
borralho.”
-“Ora como é que eu
hei-de fazer isso, se o nosso compadre está lá na cozinha e se me vê ao lume
faz-me alguma pirraça!”
-“Anda lá, vai
experimentar!”
A mulher fez o bolo e foi
cozê-lo; mas o compadre assim que a viu,
veio assentar-se ao lume, dizendo que não podia dormir com frio e pegando na
tenaz, diz-lhe:
-“ Agora vou contar-lhe a
minha história!Olhe comadre o meu pai era rico, mas nós quando ele morreu éramos
14 irmãos, de maneira que teve de entrar a justiça em casa por causa das
partilhas. Que desgraça nos sucedeu, minha comadre! Foi tudo dividido assim,
bocado a um, bocado a outro; a um as panelas, a outro os tachos, a outro os
pratos, por fim era já tão grande a barafunda , que cada um tirava o que podia”
E a cada quinhão de que falava fazia um risco fundo com a
tenaz no bolo. O bolo ficou todo sujo de cinza que era impossível de se comer!
A pobre mulher, por mais
que tentasse que ele não estragasse o bolo, não conseguiu nada, porque ele
estava muito entusiasmado a fazer os quinhões, e quando viu o estado em que ele
pôs o bolo disse: - “Ai compadre da
minha alma! Que era um bolo para o meu marido!”
-“Ai comadre porque não
mo disse, e eu julgava que era o formento que vossemecê estava a fazer!”
-“Então agora o que lhe
hei-de eu dizer?”
-“Ora, diga-lhe que se
deixou dormir, e que o gato o comeu!””
A mulher foi-lhe dizer
isso. O marido ficou desesperado, e como não podia ficar assim, resolveu pôr às
costas a albarda da burra e ir para o faval, comer favas cruas. Assim fez. Mas
o compadre que o sentiu sair, pega numa espingarda e vai atrás dele, e quando o
apanhou a comer as favas, dá um tiro para o ar. O homem assim que ouviu o tiro,
começou a gritar: - “ Oh compadre não atire que sou eu!”
O outro fez-se muito
admirado e perguntou-lhe o que estava ali a fazer coberto com a albarda do
burro. Que ele tinha disparado pensando que era uma raposa que estivesse a
comer as favas.
-“ É que como ontem não
jantei como é costume e nem ceei, não posso dormir com fome, e vossemecê tem
estragado o que a minha mulher tem ido fazer para eu comer, e por isso me vi
obrigado a vir comer favas!”
-“ Ora muito bem, pois
isso que eu lhe fiz hoje, foi para o compadre avaliar o que a sua mulher e os
seus filhos passam com a sua maldade de os fazer passar fome. Agora que já sabe
o que isso custa, deve emendar-se e deixar que a sua família encha a barriga.”
O homem aprendeu a lição,
e daí em diante, comiam todos a satisfazer-se, e ele já não dizia:
“Graças a Deus para sempre,
Tenho a barriga cheia e toda a minha gente.”
FIM
Revista “ A
Tradição” Anos IV a VI 1902-1904 ( Pág 141)
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