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terça-feira, 11 de março de 2014

GRAÇAS A DEUS PARA SEMPRE ...

“GRAÇAS A DEUS PARA SEMPRE,
TENHO A BARRIGA CHEIA E TODA A MINHA GENTE”
Havia n’outro tempo um homem muito ruim para a mulher e para os filhos, e por isso  fazia-os passar fomes, batia-lhes, não falava com eles, enfim, a pobre mulher vivia num tormento constante.
Tinha ele, por costume, ser o primeiro que aviava o seu prato, com pouca comida, e principiava logo a comer, de maneira que quando a mulher estava a aviar o prato do terceiro ou do quarto filho, já ele tinha acabado, e então tirava a saladeira que tinha o resto do jantar, e guardava-a no armário, e dizia à maneira de graça:
“Graça a Deus para sempre,
Tenho a barriga cheia e toda a minha gente”
A mulher coitadinha tinha que comer só pão, para que os filhos comessem o que ela tinha podido tirar da saladeira, mas que era pouco para tantos. E ele, como naquela altura, tinha comido pouco, depois vinha comer sozinho o resto  da comida que estava na saladeira  guardada no armário. Assim sucedia todos os dias e a todas as refeições, a mulher e os filhos andavam sempre com fome.
Um dia apareceu lá em casa um compadre a quem a mulher cheia de desgosto contou o que o marido lhe fazia e a má vida que lhe dava devido ao seu mau génio.
O compadre teve muita dó dela e dos filhos e prometeu-lhe que o havia de ensinar a ser bom marido e bom pai.
Veio depois o marido e fez muitas festas ao compadre, convidando-o para ficar em sua casa, etc. etc...
Chegou a hora do jantar e o dono da casa fez o mesmo do costume; mas quando ia tirar a saladeira para a ir guardar, depois de dizer a oração do costume:
 “Graça a Deus para sempre,
Tenho a barriga cheia e toda a minha gente”
diz-lhe o compadre: “Espere lá compadre, se vossemecê tem a barriga cheia, a minha e a das crianças estão despejadas; e como vossemecê me convidou para   ficar na sua casa, não há-de ser para eu passar fome!”
O outro envergonhou-se de voltar a sentar-se à mesa, e foi para o trabalho, e o compadre, a mulher e os filhos comeram a fartar.
Depois disse para a comadre: -“ Hoje, vossemecê não faça ceia, deixe o resto  por minha conta!”
Chegou a noite. A mulher não falava em ceia e depois de terem estado um bocado sentados à lareira a conversar, foram-se todos deitar, mas no meio da noite, o dono da casa  que não conseguia dormir com tanta fome, acordou a mulher e disse-lhe:
 - “ Oh mulher, p'lamórdeus, vai-me fazer alguma coisa para comer, que não posso estar com tanta fome!”
-“Ai home, o que te posso fazer a estas horas?”
-“ Faz-me umas papas!”
Levantou-se a pobre mulher, reavivou o lume e pôs o tacho com a água ao lume a ferver com a farinha, mas quando as papas estavam quase prontas, o compadre que tinha ficado na cozinha “para dormir mais quente” atira com as meias sujas lá para dentro do tacho, que estava mal seguro na trempe, tombou e entornaram-se as papas.
-“ Ai compadre que me desgraçou” – disse a comadre
-“Então a comadre não estava a fazer a barrela?”
-“Não senhor, eram as papas para o meu marido que está cheio de fome! Então o que lhe hei-de agora dizer?”
-“Ora, conte-lhe o meu engano!”
A mulher foi para o quarto contar ao marido o que se passou, mas ele que tinha muita fome diz-lhe: -“ Oh mulher, tem paciência, vai fazer-me um bolo da amassadura, e coze-o no borralho.”
-“Ora como é que eu hei-de fazer isso, se o nosso compadre está lá na cozinha e se me vê ao lume faz-me alguma pirraça!”
-“Anda lá, vai experimentar!”
A mulher fez o bolo e foi cozê-lo;  mas o compadre assim que a viu, veio assentar-se ao lume, dizendo que não podia dormir com frio e pegando na tenaz, diz-lhe:
-“ Agora vou contar-lhe a minha história!Olhe comadre o meu pai era rico, mas nós quando ele morreu éramos 14 irmãos, de maneira que teve de entrar a justiça em casa por causa das partilhas. Que desgraça nos sucedeu, minha comadre! Foi tudo dividido assim, bocado a um, bocado a outro; a um as panelas, a outro os tachos, a outro os pratos, por fim era já tão grande a barafunda , que cada um tirava o que podia”
E a cada quinhão  de que falava fazia um risco fundo com a tenaz no bolo. O bolo ficou todo sujo de cinza que era impossível de se comer!
A pobre mulher, por mais que tentasse que ele não estragasse o bolo, não conseguiu nada, porque ele estava muito entusiasmado a fazer os quinhões, e quando viu o estado em que ele pôs o bolo disse:  - “Ai compadre da minha alma! Que era um bolo para o meu marido!”
-“Ai comadre porque não mo disse, e eu julgava que era o fermento que vossemecê estava a fazer!”
-“Então agora o que lhe hei-de eu dizer?”
-“Ora, diga-lhe que se deixou dormir, e que o gato o comeu!””
A mulher foi-lhe dizer isso. O marido ficou desesperado, e como não podia ficar assim, resolveu pôr às costas a albarda da burra e ir para o faval, comer favas cruas. Assim fez. Mas o compadre que o sentiu sair, pega numa espingarda e vai atrás dele, e quando o apanhou a comer as favas, dá um tiro para o ar. O homem assim que ouviu o tiro, começou a gritar: - “ Oh compadre não atire que sou eu!”
O outro fez-se muito admirado e perguntou-lhe o que estava ali a fazer coberto com a albarda do burro. Que ele tinha disparado pensando que era uma raposa que estivesse a comer as favas.
-“ É que como ontem não jantei como é costume e nem ceei, não posso dormir com fome, e vossemecê tem estragado o que a minha mulher tem ido fazer para eu comer, e por isso me vi obrigado a vir comer favas!”
-“ Ora muito bem, pois isso que eu lhe fiz hoje, foi para o compadre avaliar o que a sua mulher e os seus filhos passam com a sua maldade de os fazer passar fome. Agora que já sabe o que isso custa, deve emendar-se e deixar que a sua família encha a barriga.”
O homem aprendeu a lição, e daí em diante, comiam todos a satisfazer-se, e ele já não dizia:
“Graças a Deus para sempre,
Tenho a barriga cheia e toda a minha gente.”

FIM



Revista “ A Tradição”   Anos IV a VI  1902-1904 ( Pág 141)


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